Direito fundamental
Réu tem direito de se defender mesmo na fase de inquérito
por Lilian Matsuura
O réu deve ter assegurado o amplo direito de defesa mesmo que na fase de inquérito policial. Com este entendimento, o ministro Gilmar Mendes aceitou o pedido de liminar de Ivo Almeida Costa, assessor do ex-ministro de Minas e Energia Silas Rondeau. Costa entrou com o pedido para garantir o direito de juntar laudo pericial em sua defesa no inquérito policial que a Polícia Federal move contra ele no curso das investigações da Operação Navalha.
Ivo é acusado de ter recebido propina de R$ 100 mil de uma funcionária da empresa Gautama dentro do Ministério de Minas e Energia. As provas da acusação seriam a gravação de uma conversa telefônica em o que o nome de Ivo foi mencionado e uma gravação das câmaras de segurança do ministério, em que a funcionária aparecia com um envelope onde estaria o dinheiro.
Para tentar comprovar sua inocência, Ivo contratou um perito que elaborou um laudo demonstrando que a interpretação feita pela Polícia Federal das imagens e da ligação não estaria certa. A sua defesa pediu ao Superior Tribunal de Justiça (onde corre o processo) que o documento fosse anexado aos autos.
No sentido contrário à jurisprudência do STF, a Corte Especial do STJ negou o pedido. O acórdão, relatado pela ministra Eliana Calmon, informa que o “inquérito policial é um procedimento investigatório e inquisitorial, não envolto pelo contraditório, não tendo o indiciado direito de se envolver na colheita da prova”. E ressalta que a juntada de documentos na fase do inquérito pode ser indeferida pelo juiz, quando causa tumulto processual.
No pedido de liminar ao Supremo, a defesa argumentou a existência de fumus boni iuris. Isso porque, o novo laudo comprovaria a sua inocência e poderia demover o Ministério Público da intenção de denunciá-lo. Os advogados alegam que, mesmo tendo o inquérito caráter inquisitorial, o acusado pode requerer diligências ou juntar provas.
“O indeferimento de tais medidas, portanto, caracteriza flagrante coação ilegal que atinge o direito de ir e vir do paciente, já que o sujeita a ser denunciado, em decorrência da mutilação dos dados informativos constantes do inquérito”, argumentam.
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes relaciona uma série de precedente da Corte em relação a pedidos semelhantes e no sentido de deferir o pedido da defesa. “Tais julgados respaldam a tendência interpretativa de garantir aos investigados e indiciados a máxima efetividade constitucional no que concerne à proteção dos direitos fundamentais mencionados (CF, art. 5o, LIV e LV)”, concluiu.
Para o ministro, diante de tantas decisões não há razão jurídica plausível para que a Corte Especial do STJ tenha indeferido o pedido da defesa para juntar o laudo ao inquérito.
Operação Navalha
A Operação, deflagrada pela Polícia Federal em abril deste ano, desmontou um esquema de corrupção relacionado à contratação de obras públicas feitas pelo governo federal. A operação foi feita em Alagoas, Bahia, Sergipe, Piauí, Maranhão e Mato Grosso e no Distrito Federal.
Os investigados são acusados de fraude de licitações, corrupção, tráfico de influência, superfaturamento de obras e desvio de dinheiro.
Segundo o inquérito, o esquema de desvio de recursos públicos federais envolvia empresários da construtora Gautama, sediada em Salvador, e servidores públicos que operavam no governo federal e em governos estaduais e municipais. O esquema garantiria o direcionamento de verbas públicas para obras de interesse da Gautama e então conseguia licitações para empresas por ela patrocinadas. Ainda segundo a PF, as obras eram superfaturadas, irregulares ou mesmo inexistentes.
HC 92.599 e Inquérito 544
Leia a decisão
MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 92.599-5 BAHIA
RELATOR : MIN. GILMAR MENDES
PACIENTE(S) : IVO ALMEIDA COSTA
IMPETRANTE(S) : EDUARDO ANTÔNIO LUCHO FERRÃO E OUTRO(A/S)
COATOR(A/S)(ES) : RELATORA DO INQ Nº 544 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DECISÃO: Trata-se de pedido de medida liminar em habeas corpus, impetrado por EDUARDO ANTÔNIO LUCHO FERRÃO e MARCELO LEAL DE LIMA OLIVEIRA, em favor de IVO ALMEIDA COSTA.
Nestes autos, a defesa questiona acórdão proferido pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sede de Agravo Regimental no Inquérito no 544/BA, de relatoria da Min. Eliana Calmon (DJ 9.10.2007). Eis o teor da ementa do acórdão impugnado:
“PROCESSO PENAL – INQUÉRITO POLICIAL – JUNTADA DE DOCUMENTO – INDEFERIMENTO.
1. O inquérito policial é procedimento investigatório e inquisitorial, não envolto pelo contraditório, não tendo o indiciado direito de se envolver na colheita da prova.
2. A juntada de documentos na fase do inquérito, quando ocasionar tumulto processual, pode ser indeferida pelo juiz.
3. No rito procedimental dos processos penais de competência originária dos Tribunais, dispõe a defesa de uma fase preliminar, antes do recebimento da denúncia, para produzir provas visando o não recebimento da peça acusatória.
4. Agravo regimental não provido” – (AgRg – INQ no 544/BA, Rel. Min. Eliana Calmon, Corte Especial, unânime, DJ 9.10.2007 – fls. 128-136).
O ora paciente figura como investigado nos autos do INQ nº 544/BA, em que se apuram fatos relacionados à denominada “Operação Navalha”.
Segundo alega a inicial:
“Visando comprovar sua inocência, o Paciente contratou o renomado Perito Ricardo Molina, o qual elaborou laudo demonstrando não serem verdadeiras as interpretações realizadas pela Polícia Federal a partir das mencionadas gravações.
[…]
Em face de sua importância probatória, o Paciente elaborou petição demonstrando os equívocos trazidos no inquérito policial e requereu a juntada do mencionado laudo aos autos” – (fls. 3/4).
Em 1º de agosto de 2007, a Relatora perante o STJ, Min. Eliana Calmon, indeferiu o pedido de juntada do referido laudo aos autos, por meio do seguinte despacho (fls. 137-139):
“Devolvam-se os expedientes
00127270/2007 e 00126577/2007 ao interessado para que venha aos autos com a sua defesa, caso seja indiciado” – (fl. 139).
Em 13 de agosto de 2007, a defesa interpôs agravo regimental contra esse ato monocrático (fls. 11-15).
Em 5 de setembro de 2007, a Corte Especial do STJ, por unanimidade de votos, negou provimento ao agravo regimental (fls. 16-19). É este o acórdão impugnado neste habeas corpus.
Em 28 de setembro de 2007, solicitei informações nos seguintes termos:
“Solicitem-se à Ministra Relatora do Inquérito no 544/BA perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), Min. Eliana Calmon: i) o inteiro teor do acórdão proferido no AgRg no Inquérito no 544/BA; ou, caso o acórdão ainda não tenha sido publicado, o registro das notas taquigráficas correspondentes; e ii) cópia da decisão monocrática que indeferiu o pedido de juntada de documentos aos autos, formulado pelo ora paciente (IVO ALMEIDA COSTA) nos autos do referido inquérito” – (fl. 122).
No que concerne à plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni iuris), a impetração sustenta:
“ao requerer a juntada do laudo pericial ao inquérito, objetivava o Paciente subsidiar o próprio convencimento do Ministério Público que, diante de tais provas, pode, até mesmo, deixar de oferecer denúncia contra si.
[…]
Assim, em que pese possuir o inquérito característica inquisitorial, o Acusado pode, efetivamente, requerer diligências ou mesmo juntar provas a este.
[…]
Assim, não resta a menor dúvida que, em pese a natureza inquisitorial do caderno investigatório, o Indiciado tem direito de nele se manifestar, requerendo providências e juntando documentos, como no caso presente de inegável pertinência.
É que os documentos cuja juntada foi requerida pelo Paciente demonstram, de maneira clara, não serem verdadeiras as suposições extraídas do inquérito pela Polícia Federal e reproduzidas pelo Ministério Público em sua manifestação anterior a ordem de prisão de todos os envolvidos.
O indeferimento de tais medidas, portanto, caracteriza flagrante coação ilegal que atinge o direito de ir e vir do Paciente,já que o sujeita a ser denunciado, em decorrência da mutilação dos dados informativos constantes do inquérito.
[…]
O fumus boni iuris refulge cristalino da gritante ilegalidade acima apontada em razão do indeferimento da juntada de documentos no inquérito” – (fls. 5 e 7).
Quanto à urgência da pretensão cautelar (periculum in mora), aduz-se que:
“O periculum in mora, por outro lado, repousa no fundado receio de que em muito breve o Ministério Público venha a oferecer denúncia nos mencionados autos de inquérito, fazendo-o sem tomar conhecimento das provas dele desentranhadas” – (fl. 7).
Por fim, a defesa requer:
“seja concedida liminar a fim de que se determine que os documentos desentranhados sejam novamente juntados aos autos, deles intimando-se o Ministério Público.
Requer ao final seja concedida a presente ordem de habeas corpus, confirmando-se a liminar requerida e determinando-se, em definitivo, a juntada dos documentos desentranhados, assim como de outros documentos pertinentes à causa” – (fl. 10).
Passo a decidir tão-somente o pedido de medida liminar.
Eis a íntegra do voto proferido pela relatora perante o STJ, Min. Eliana Calmon, no julgamento do acórdão ora impugnado (fls. 16-19):
“Na condução do inquérito policial no qual estão indiciadas mais de 50 (cinqüenta) pessoas, com 71 (setenta e um) volumes entre autos principais e apensos, com mais de 2.000 (duas mil) movimentações, pede o indiciado a juntada de um laudo pericial por ele encomendado e de páginas de revista comentando sobre a operação policial cujos autos, presentemente, encontram-se no MPF, o qual trabalha em torno do oferecimento da denúncia.
Entendi que era uma demasia passar a juntar aos autos documentos essencialmente da defesa, principalmente porque, no rito das ações penais de competência originária, dispõe a defesa de uma fase preliminar, antes da apreciação da denúncia, para produzir provas, inclusive documental.
Assim, diante da situação, entendi desnecessária a juntada dos documentos oferecidos nesta fase inquisitorial em que se forma peça informativa. Segundo a doutrina ‘o inquérito é um procedimento investigatório, não envolto pelo contraditório, nem abrangido pela ampla defesa, motivo pelo qual o indiciado não tem o direito de se envolver na colheita da prova, o mesmo valendo para a vítima.
Entretanto, se a prova requerida for muito importante, pode a parte, cujo requerimento foi indeferido, dirigi-lo novamente ao promotor ou ao juiz que acompanham, necessariamente, o andamento do inquérito. Julgando viável o solicitado, a diligência pode ser requisitada pela autoridade competente, obrigando, então, o delegado a atendê-la’ (Guilherme de Souza Nucci, Código de Processo Penal Comentado, 5ª ed., pag.115).
Assim sendo, ratifico o indeferimento antecedente e voto pelo não provimento do presente recurso.
É o voto” – (Voto da Rel. Min. Eliana Calmon no AgRg – INQ no 544/BA, Rel. Min. Eliana Calmon, Corte Especial, unânime, DJ 9.10.2007 – fls. 134-136).
Com relação à argumentação expendida pelo acórdão recorrido no sentido de que o inquérito policial seria procedimento investigatório e inquisitorial não envolto pelo contraditório, é pertinente traçar algumas considerações.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal (STF) tem assegurado a amplitude do direito de defesa mesmo que em sede de inquéritos policiais e/ou originários.
Nesse particular, em especial no que concerne ao exercício do contraditório e ao acesso de dados e documentos já produzidos no âmbito das investigações criminais, destaco os seguintes julgados:
“EMENTA: ADVOGADO. Investigação sigilosa do Ministério Público Federal. Sigilo inoponível ao patrono do suspeito ou investigado. Intervenção nos autos. Elementos documentados. Acesso amplo. Assistência técnica ao cliente ou constituinte. Prerrogativa profissional garantida. Resguardo da eficácia das investigações em curso ou por fazer. Desnecessidade de constarem dos autos do procedimento investigatório. HC concedido. Inteligência do art. 5o, LXIII, da CF, art. 20 do CPP, a
rt. 7o, XIV, da Lei no 8.906/94, art. 16 do CPPM, e art. 26 da Lei no 6.368/76 Precedentes. É direito do advogado, suscetível de ser garantido por habeas corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam respeito ao constituinte” – (HC no 88.190/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, 2ª Turma, unânime, DJ 6.10.2006).
“EMENTA: I. Habeas corpus prejudicado dado o superveniente julgamento do mérito do mandado de segurança cuja decisão liminar era objeto da impetração ao Superior Tribunal de Justiça e, em conseqüência, deste.
II. Habeas corpus: inviabilidade: incidência da Súmula 691 (‘Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de impetrado contra decisão do Relator que, em requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar’).
III. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial.
1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio.
2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7o, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade.
3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5o, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações.
4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.
5. Habeas corpus de ofício deferido, para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial e a obtenção de cópias pertinentes, com as ressalvas mencionadas” — (HC no 87.827/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, unânime, DJ 23.6.2006).
Em idêntico sentido, registro ainda o julgamento do HC no 88.520/AP (Rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno, maioria, julgado em 23.11.2006, acórdão pendente de publicação), no qual, uma vez mais, o Plenário definiu novas amplitudes constitucionais com relação ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório (CF, art. 5o, incisos LIV e LV).
Da leitura dos precedentes colacionados, verifica-se que tais julgados respaldam a tendência interpretativa de garantir aos investigados e indiciados a máxima efetividade constitucional no que concerne à proteção dos direitos fundamentais mencionados (CF, art. 5o, LIV e LV).
Destarte, nos termos da jurisprudência colacionada, entendo não haver razão jurídica plausível para que a Corte Especial do STJ indefira pedido de juntada do laudo pericial requerida pela defesa do ora paciente.
Ressalvado melhor juízo quando da apreciação de mérito, constato a existência dos requisitos autorizadores da concessão da liminar pleiteada (fumus boni juris e periculum in mora).
Ante os fundamentos expostos, defiro o pedido de medida liminar para determinar a juntada dos expedientes 00127270/2007 e 00126577/2007 aos autos do Inquérito no 544/BA, em trâmite perante o STJ. Nessa extensão do deferimento, o representante do Ministério Público Federal oficiante deverá ser oportunamente intimado da juntada da documentação referida.
Após, abra-se vista ao Procurador-Geral da República (RI/STF, art. 192).
Publique-se.
Brasília, 6 de novembro de 2007.
Ministro GILMAR MENDES
Relator
Revista Consultor Jurídico, 7 de novembro de 2007 – www.conjur.estadao.com.br