Estrutura do processo
MP não pode fazer sustentação oral depois da defesa
por Lilian Matsuura
No processo criminal, a sustentação oral do representante do Ministério Público deve sempre preceder à da defesa, sob pena de nulidade do julgamento. O entendimento foi firmado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em fevereiro, ao seguir voto do ministro Cezar Peluso — para quem permitir ao MP sustentar depois da defesa compromete o exercício do contraditório.
Com a decisão, está anulado o julgamento contra dois diretores do Banco Mercantil de São Paulo. Os diretores eram responsáveis pelas áreas de contabilidade, auditoria e carteira de crédito imobiliário do Banco Mercantil. Eles respondem o processo na 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo por crime contra o sistema financeiro e nacional.
“O direito de a defesa falar por último decorre, aliás, do próprio sistema, como se vê, sem esforço, a diversas normas do Código de Processo Penal. As testemunhas da acusação são ouvidas antes das arroladas pela defesa. É conferida vista dos autos ao Ministério Público e, só depois, à defesa, para requerer diligências complementares, bem como para apresentação de alegações finais. A defesa manifesta-se depois do Ministério Público até quando este funciona exclusivamente como custos legis, o que ocorre nas ações penais de conhecimento, de natureza condenatória, de iniciativa privada”, argumentou Cezar Peluso.
O ministro sustentou que “invocar a qualidade de custos legis do Ministério Público perante os tribunais, em sede recursal, parece-me caracterizar um desses expedientes que fraudam as garantias essenciais a sistema penal verdadeiramente acusatório, ou de partes”.
Para Peluso, a sustentação oral da defesa antes das considerações do MP violenta a própria estrutura acusatória do processo penal. “O exercício do contraditório deve, assim, permear todo o processo, garantindo sempre a manifestação da defesa, desde a possibilidade de arrazoar e de contra-arrazoar os recursos, até a de se fazer ouvir no próprio julgamento destes nos tribunais”, observou.
Depois do voto de Peluso (relator do caso), o ministro Joaquim Barbosa pediu vista dos autos. Quando analisou o processo, propôs submetê-lo ao Plenário da Corte, no que foi seguido pelos ministros que compõem a 2ª Turma. O Plenário, por unanimidade, corroborou a decisão do relator.
Leia o voto
21/11/2006
SEGUNDA TURMA
HABEAS CORPUS 87.926-8 SÃO PAULO
RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO
PACIENTE(S): PAULO FRANCISCO DA COSTA AGUIAR TOSCHI
PACIENTE(S): SÉRGIO ANTÔNIO BERTUSSI
IMPETRANTE(S): ARNALDO MALHEIROS FILHO E OUTRO(A/S)
COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
R E L A T Ó R I O
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator): 1. Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de PAULO FRANCISCO DA COSTA AGUIAR TOSCHI e SÉRGIO ANTÔNIO BERTUSSI, contra decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça que, por maioria de votos, lhes denegou a ordem nos autos do HC nº 41.667, nos seguintes termos:
“HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. DENÚNCIA REJEITADA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PROVIMENTO. SUSTENTAÇÃO ORAL PERANTE O TRIBUNAL. ORDEM. ART. 610, PARÁGRAFO ÚNICO, E ART. 618, AMBOS DO CPP. ÓRGÃO MINISTERIAL, NA FUNÇÃO PRECÍPUA DE CUSTUS LEGIS (sic) FALA POR ÚLTIMO. AUSÊNCIA DE OFENSA À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. PREJUÍZO INDEMONSTRADO.
1. A ordem estabelecida pela lei processual para a sustentação oral em sede de recurso em sentido estrito, diferentemente do que estatui o art. 500 do CPP, deixa o representante do Ministério Público por último. Inteligência dos arts. 610, parágrafo único, e 618, do CPP.
2. De um lado, resta claro o papel de parte do órgão ministerial que recorre, como no caso, buscando o recebimento da denúncia; de outro lado, o representante do Parquet que atua em segundo grau e nas instâncias extraordinárias exerce o papel precípuo de custus legis (sic). E, inclusive, não está ele vinculado às razões recursais, podendo tranq&
uuml;ilamente, por ocasião do julgamento, opinar em sentido diverso, em favor do réu. É o que acontece também neste Superior Tribunal de Justiça, em que o Regimento Interno dispõe no seu art. 159, § 2º, que, nessa condição de fiscal da lei, o Ministério Público Federal "fala após o recorrente e o recorrido".
3. Ainda que assim não fosse, "ne pas de nulitté sans grief", ou seja, não há nulidade sem prejuízo (art. 563, CPP), que deve ser demonstrado. O simples fato de ter sido dado provimento ao recurso ministerial não implica, necessariamente, ter havido prejuízo à defesa. É evidente que a decisão lhe foi desfavorável, mas o prejuízo a ser demonstrado para a nulificação do ato deve estar ligado aos fundamentos utilizados como razão de decidir, ou quaisquer outras circunstâncias que, sem ter podido reagir a defesa, foram decisivas no resultado.
Seria o caso, por exemplo, de demonstrar o réu que sua defesa ficou prejudicada porque tal ou qual argumento deduzido pela acusação não pôde ser, na oportunidade, contraditado. Se não houve qualquer relevância na ordem de apresentação dos respectivos argumentos, tendo sido todos contrapostos, não há falar em ofensa ao contraditório ou à ampla defesa. Cumpre destacar, nesse ponto, que a impetração se limitou a argüir a nulidade, sem demonstrar efetivo prejuízo. Precedente.
4. Ordem denegada” (fls. 37-58).
Os pacientes estavam sendo processados, perante a 1a Vara Federal Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo, pela prática do delito previsto no art. 10 da Lei nº 7.492/86, em razão de o Banco Mercantil Finasa S/A – instituição financeira de que são diretores responsáveis, respectivamente, pela área contábil/auditoria e pela carteira de crédito imobiliário – ter, segundo narra a denúncia, promovido a baixa de 987 e, depois, de 797 contratos de financiamento, sem efetivo ingresso dos respectivos recursos na instituição.
O Juízo de 1o grau rejeitou a denúncia por entender que a imputação implicava atribuição de responsabilidade unicamente objetiva.
O Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito, o qual foi provido pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região, dando início, então, ao processo-crime registrado sob o nº 2001.61.81.005478-9 e ora em trâmite na 6a Vara Criminal Federal de São Paulo, especializada em Crimes contra Sistema Nacional e Lavagem de Dinheiro.
Alegam os impetrantes que o julgamento do recurso em sentido estrito, pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região, é absolutamente nulo, eis que, na sessão, o patrono dos pacientes foi instado a proferir sustentação oral antes do Procurador-Geral.
Segundo narra a inicial, “tratando-se, porém, de recurso da Acusação, o primeiro impetrante levantou questão de ordem, pedindo que o recorrente sustentasse oralmente suas razões antes do procurador dos recorridos”.
A questão de ordem foi, contudo, rejeitada à unanimidade, sob argumento de que o Ministério Público, em segundo grau, funciona apenas como custos legis:
“A Turma, à unanimidade, rejeitou a questão de ordem suscitada pela defesa no sentido de que o Ministério Público Federal se manifestasse previamente à sua sustentação oral, ao argumento de que não se confundem os papéis do Ministério Público ora como recorrente, ora como ‘custos legis’ e, na presente situação, o Procurador Regional da República atua como ‘custos legis’. No mérito, a Turma, à unanimidade, deu provimento ao recurso para receber a denúncia oferecida em face de Paulo Francisco da Costa Aguiar Toschi e de Sérgio Antônio Bertussi, nos termos do voto do(a) relator(a)”.
Foi, então, impetrado habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, que, como visto, denegou a ordem, por maioria de votos.
Contra tal decisão volta-se o presente pedido de writ, onde os impetrantes, em síntese, sustentam que o Ministério Público é órgão uno e indivisível, sendo impróprio invocar-se a figura de custos legis para justificar a imposição, feita à defesa dos pacientes, de que procedesse à sustentação oral antes do representante do Ministério Público. Alegam, pois, ofensa à garantia constitucional do contraditório, que pressupõe o direito de a defesa falar por último, notadamente nos recursos exclusivos da acusação, como ocorre no caso.
A Procuradoria-Geral da República opinou pela denegação da ordem (fls. 62-66), verbis:
“7. Como se vê, não merece prosperar a impetração.
8. Primeiro, a manifestação oral do Ministério Público Federal, feita quando do julgamento do recurso em sentido estrito, não se encontra nos autos, de modo a falar que a sustentação tenha influenciado no julgamento do referido recurso, que recebeu a denúncia. Assim, não há prejuízo, a justificar a anulação do julgamento. Não havendo prejuízo, não há falar em nulidade. Ademais, trata-se de questiúncula, no caso, de menor importância, que não teve qualquer influência no julgamento.
9. Assim, mesmo corretos os argumentos dos impetrantes, só para argumentar, haveria necessidade de existir prejuízo, como mencionado. Prejuízo este decorrente de novos argumentos do parquet, quando do julgamento, que tenham servido de base para os desembargadores federais decidirem. Isso não ocorreu. Desse modo, não estando aqui transcritos os argumentos apresentados, nem evidenciados que foram eles, em 2a. Instância, que deram origem à decisão hostilizada, não há porque anular o julgado – ne pas de nullité sans grief.
10. Segundo, não há ofensa ao contraditório, porque não houve qualquer relevância na ordem de apresentação dos respectivos argumentos, como menciona a ilustre Ministra do Superior Tribunal de Justiça (fl. 49). Ainda: ‘cumpre destacar, nesse ponto, que a impetração se limitou a argüir a nulidade, sem demonstrar efetivo prejuízo.’ – grifos do original (fl. 49).
11. Por igual, são relevantes os argumentos da r. Ministra Relatora, que, com espeque no art. 618 do C.P.Penal, salienta serem os regimentos internos dos Tribunais complementares à norma processual, quanto aos processos e julgamentos de recursos e apelações. Diz, no ponto, verbis (fls. 48):
‘Note-se que a ordem estabelecida pela lei processual para a sustentação oral em sede de recurso em sentido estrito, diferentemente do que estatui o art. 500 do CPP, deixa o representante do Ministério Público por último.
De um lado, resta claro o papel de parte do órgão ministerial que recorre, como no caso, buscando o recebimento da denúncia; de outro lado, o representante do Parquet que atua em segundo grau e nas instâncias extraordinárias exerce o papel precípuo de custus legis (sic). É bom lembrar, inclusive, que não está ele cinvulado às razoes recursais, podendo tranqüilamente, por ocasião do julgamento, opinar em sentido diverso, em favor do réu. É o que acontece também neste Superior Tribunal de Justiça, em que o Regimento Interno dispõe no art. 159, § 2o, que, nessa condição de fiscal da lei, o Ministério Público Federal ‘fala após o recorrente e o recorrido’. Ao que consta, no mesmo sentido é o Regimento Interno do TRF da 3a. Região’.
12. Terceiro, como reconhecido pelo Tribunal dito coator, o Ministério Público, em 2a. Instância atua como fiscal da lei, quando a ação não é de competência originária. E, portanto, como custos legis pode ele, inclusive, manifestar-se contra a própria ação, como muitas vezes acontece. Em 2a. Instância, o membro do parquet não é obrigado a manter a pretensão posta pelo seu colega de 1a. Instância. Por isso, corretas as palavras do Ministro Félix Fischer (fls. 51):
‘Se ele não fosse custos legis, seria declaradamente inconstitucional a manifestação feita por escrito por órgão que atua em segundo grau ou então aqui também. É que haveria uma intervenção a mais, em frontal quebra do contraditório. Com o custos legis não há qualquer irregularidade.
A existência de um parecer no nosso sistema, que inegavelmente é híbrido — dificilmente tem alguma correlação com outros sistemas — temos uma intervenção a mais que só é possível se o Ministério Público for considerado, nesses casos, como sendo fiscal da lei.
Penso que, sendo fiscal da lei, obrigá-lo, a não ser nas hipóteses em que a lei assim o exija, a atuar conforme o recurso seja do Ministério Público ou da defesa, não tem sentido porque, afinal de contas, ele é o fiscal da lei em segundo grau. E é assim também aqui.
Só deixa de ser fiscal da lei quando o Ministério Público atua junto aos Tribunais na competência originária.
É, repito, um sistema híbrido, mas se entendermos que não é assim, teremos de pensar que o parecer não pode existir, pois seria uma intervenção a mais, que a defesa não possui’.
13. Quarto, se a Constituição (art. 96, item I, letra a, da Constituição) defere aos Tribunais elaborar as normas de processo e deferir as garantias das partes, não havendo norma processual em sentido contrário no Tribunal Regional Federal da 3a. Região, deve prevalecer, como no caso, a norma gera que estabelece que o custos legis fala, na sessão, após o(s) advogado(s) das partes.
14. Por estas breves razões, manifesta-se a Procuradoria Geral da República pelo indeferimento do writ” (fls. 64-66).
Concedi liminar (fls. 98-101), determinando a suspensão do processo-crime movido contra os pacientes, até o julgamento final deste pedido.
Iniciado o julgamento em 21 de novembro de 2006, o Min. JOAQUIM BARBOSA pediu vista dos autos.
Retomado o julgamento, em 13 de novembro p.p., a Segunda Turma, acolhendo proposta do Min. JOAQUIM BARBOSA, deliberou submeter o julgamento da presente causa do Plenário do Supremo Tribunal Federal.
Neste ínterim, o juízo da 6ª Vara Federal Criminal Especializada em Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Dinheiro informou que foi declarada extinta a punibilidade dos fatos imputados ao paciente PAULO FRANCISCO DA COSTA AGUIAR, com fundamento nos arts. 107, inc. IV, 109. inc. III e 115 do Código Penal e art. 61 do Código de Processo Penal (fls. 130-136).
A defesa reiterou os termos da impetração, porque a ação penal prossegue em relação ao outro paciente, SÉRGIO ANTÔNIO BERTUSSI (fl. 143).
É o relatório.
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator):
1. A questão última desta causa está em saber se, em sessão de julgamento de recurso exclusivo da acusação, pode o representante do Ministério Público manifestar-se somente depois da sustentação oral da defesa. Penso que não.
2. Ainda que invoque a qualidade de custos legis, o representante do Ministério Público deve sempre pronunciar-se, na sessão de julgamento de recurso, antes da sustentação oral da defesa. As partes têm direito à estrita observância do procedimento tipificado na lei, como concretização do princípio do devido processo legal, a cujo âmbito pertencem as garantias específicas do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da Constituição da República).
O exercício do contraditório deve, assim, permear todo o processo, garantindo sempre, como ônus, a possibilidade de manifestações oportunas e eficazes da defesa, desde a de arrazoar e contra-arrazoar recursos, até a de se fazer ouvir no próprio julgamento destes.
Em recurso em sentido estrito, interposto contra decisão de rejeição da denúncia, o denunciado, que, como é óbvio, ainda não foi citado, deve ter assegurado o exercício do ônus de se manifestar nos autos, pois seu interesse primordial reside em não ser réu, ou seja, em não lhe ser instaurada ação penal. Foi tal entendimento que levou esta Casa a editar a súmula 707, a qual enuncia que “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”.
Estou em que fere, igualmente, as garantias da defesa todo expediente que impeça o acusado de, por meio do defensor, usar da palavra por último, em sustentação oral, sobretudo nos casos de julgamento de recurso exclusivo da acusação. Invocar, para negá-lo, a qualidade de custos legis do Ministério P&u
acute;blico perante os tribunais, em sede recursal, parece-me caracterizar um desses artifícios linguísticos que tendem a fraudar as garantias essenciais a sistema penal verdadeiramente acusatório ou de partes.
Em excelente estudo sobre o tema, o ex-Procurador-Geral do Distrito Federal, ROGÉRIO SCHIETTI, anota:
Fonte Revista Consultor Jurídico, 27 de março de 2008 – grifo nosso