A tributação sobre a distribuição de lucros
Gustavo Brigagão
22/07/2008
Em época de carga tributária extremamente elevada, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3.007, de 2008, de autoria do deputado Chico Alencar (PSOL/RJ), que propõe a revogação da isenção do Imposto de Renda (IR) dos lucros e dividendos distribuídos pelas pessoas jurídicas brasileiras a seus sócios. A justificativa do projeto, após fazer digressões sobre a possível existência de um "incentivo sem precedentes para a remessa de lucros e dividendos ao exterior", relata em sua parte conclusiva que "há de ressaltar que o projeto em tela reintroduz a cobrança do Imposto de Renda sobre os rendimentos auferidos a título de distribuição de lucros e dividendos a beneficiário, pessoa física ou jurídica, face a evidente existência de capacidade contributiva. Essa iniciativa tem o cunho de ampliar o grau de justiça fiscal do sistema, estabelecendo tratamento isonômico para todos os contribuintes, sejam eles assalariados ou detentores de participação acionária."
São absolutamente improcedentes os argumentos que fundamentam essa proposta. A Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, que estabeleceu a isenção que o projeto pretende revogar, jamais pretendeu estabelecer um "incentivo sem precedentes para a remessa de lucros e dividendos ao exterior". Pelo contrário, seu objetivo era, conforme constava da sua própria exposição de motivos, "além de simplificar os controles e inibir a evasão, estimular o investimento nas atividades produtivas", inclusive, e principalmente, o proveniente do exterior.
Na verdade, a proposta cria uma norma que, ao agravar ainda mais a nossa já elevada carga tributária, afugentará possíveis investimentos estrangeiros no país. Sob esse prisma, o projeto estará atendendo da pior forma possível ao seu objetivo de desestimular a evasão de divisas: a suposta evasão será reduzida ou eliminada porque serão reduzidos ou sustados os investimentos que lhe poderiam dar causa.
O Brasil estará, mais uma vez, na contramão das políticas econômicas adotadas pelos demais países do mundo, que, em sua absoluta maioria, procuram evitar a dupla imposição da renda gerada pelas sociedades e repassada aos sócios ou acionistas. Enquanto alguns países simplesmente não tributam a renda na pessoa jurídica, fazendo-o apenas nas mãos dos acionistas, outros a tributam apenas na pessoa jurídica, isentando os dividendos; e outros, ainda, tributam a renda na pessoa jurídica e na pessoa do sócio, mas dão a ele um crédito em relação ao imposto pago pela pessoa jurídica. Praticamente nenhum país tributa dupla e integralmente a renda na pessoa jurídica e na pessoa física do sócio. E todos adotam algum mecanismo para evitar a dupla imposição ou para minimizá-la.
O Projeto de Lei nº 3.007 cria uma norma que afugentará possíveis investimentos estrangeiros no país
É também equivocado o argumento de que a proposta teria o cunho de ampliar "o grau de justiça fiscal do sistema, estabelecendo tratamento isonômico para todos os contribuintes", tendo em vista que o sistema jurídico vigente estabelece normas que sujeitam os rendimentos provenientes do trabalho e do capital a cargas tributárias bastante semelhantes, senão mais gravosas para o capital.
De fato, em se tratando de receita derivada do trabalho, seu montante integral representa um acréscimo patrimonial para o contribuinte, que é tributado mediante a aplicação de duas alíquotas progressivas de 15% a 27,5% sobre a base de cálculo apurada mediante a concessão de abatimentos e deduções relativos aos gastos incorridos pelo contribuinte. Na receita derivada de investimentos em pessoas jurídicas, seu montante já é desfalcado na própria geração da receita, mediante a incidência de diversos impostos indiretos – entre os quais o IPI, o ICMS ou o ISS, conforme o caso -, cujas alíquotas variam, em regra, de 5% a 25%, e de contribuições sociais – PIS e Cofins -, que, na forma não-cumulativa, incidem à alíquota de 1,65% e 7,6%, todos sobre o faturamento da empresa, independentemente de as receitas auferidas serem inferiores aos custos necessários à sua formação, e, consequentemente, de haver acréscimo patrimonial. Se houver esse acréscimo, ele ainda se sujeitará, na pessoa jurídica, à incidência de Imposto de Renda mediante a aplicação de duas alíquotas progressivas que variam de 15% a 25%, e, ainda, à incidência da contribuição social sobre o lucro à alíquota de 9%.
Em relação às sociedades profissionais, compostas por médicos, dentistas, advogados, engenheiros etc., a revogação da isenção sobre a distribuição de dividendos causaria efeitos ainda mais drásticos, tendo em vista que toda a renda por elas produzida deriva do trabalho pessoal dos sócios. Essa renda nada mais é do que o somatório da produção de cada sócio. Logo, tributar o resultado da sociedade profissional e depois tributar os valores distribuídos aos sócios significa, na prática, tributar duplamente a mesma renda, promovendo-se, aí sim, uma profunda injustiça fiscal.
Também não procede o argumento, comumente utilizado, de que, em razão da isenção que se pretende extinguir, a arrecadação acaba por ser prejudicada pela prática de evasão ou elisão fiscal por contribuintes pessoas jurídicas. Tem-se que ter em mente que, se as regras de tributação forem concebidas a partir da premissa de que os contribuintes logram escapar à tributação mediante a adoção daquelas práticas, os que se abstiverem de adotá-las acabarão sendo, na verdade, prejudicados. Não se pode legislar com os olhos voltados para a exceção e a patologia, sob pena de penalizar-se toda a coletividade em decorrência do comportamento de poucos.
Em conclusão, seria importante que, nesse momento em que se discutem propostas abrangentes de reforma tributária, que verdadeiramente alteram – para melhor ou para pior – o nosso sistema tributário nacional, os nossos congressistas se concentrassem em evitar que delas pudesse surgir um cenário ainda mais tenebroso do que aquele em que já vive o contribuinte brasileiro, e não contribuir com esse resultado propondo a revogação de regras que, na verdade, consertaram erros do passado.
Gustavo Brigagão é advogado tributarista, sócio do escritório Ulhôa Canto, Rezende e Guerra Advogados e professor de Direito tributário na Fundação Getulio Vargas (FGV)
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Fonte: Valor Econômico