O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) aceitou, em um dos primeiros casos que se tem notícia, o uso da desconsideração inversa da personalidade jurídica em ação de execução civil comum. Na prática, a decisão admite ser possível que uma empresa tenha sua conta penhorada para honrar a dívida particular de um de seus sócios caso fique provado que o empresário transferiu seu patrimônio para a empresa para evitar o pagamento de dívidas pessoais.
A tese já vem sendo adotada em ações que tratam do direito de família, mas em execuções comuns ainda são raras decisões nesse sentido. Com o entendimento favorável à possibilidade de inversão da desconsideração da personalidade jurídica, a 29ª Câmara Cível do TJSP confirmou uma liminar que desencadeou a penhora de R$ 667 mil das contas da H.C.do B. e da C.M. de V. por conta de uma dívida do dono das duas empresas, C.A. de O.A., com o escritório de advocacia Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados.
O resultado do julgamento foi publicado na quinta-feira passada no Diário Oficial. No julgamento, que ocorreu no fim do mês de novembro, os desembargadores foram unânimes em confirmar a decretação da penhora on-line das contas das empresas feita em uma antecipação de tutela em agosto pelo relator do caso, desembargador, Manoel de Queiroz Pereira Calças. Os demais desembargadores acompanharam o relator, que entendeu haver previsão legal para a aplicação da desconsideração inversa de personalidade jurídica no artigo 50 do Código Civil e no parágrafo 5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Segundo o entendimento do relator, não há qualquer proibição na sua aplicação e o instrumento deve ser usado quando o devedor "notadamente desvia bens para a pessoa jurídica da qual é controlador".
Segundo o voto do relator, há provas suficientes que demonstram que O.A. é o detentor das empresas e que, como não há dinheiro em suas contas, "exsurge evidente que, na condição de dono ou sócio de fato ou controlador das sociedades retira da caixa das empresas mediante expedientes lícitos ou ilícitos, formais ou informais o necessário para a sua manutenção e de sua família". O desembargador também ressaltou em seu voto que o empresário, "reconhecido pela imprensa como o maior revendedor de veículos da América Latina", não tem nenhum automóvel, segundo a declaração de bens apresentada, o que demonstraria que há uma confusão patrimonial de fato e de direito entre o sócio controlador e as sociedades controladas.
Na ação, o escritório Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados alega ter prestado serviços durante anos a O.A. e não ter recebido honorários. Segundo os autos do processo, antes da medida que chegou à penhora dos bens da empresa, o juiz da execução já havia determinado a penhora das contas do empresário, mas não tinham sido encontrados valores para satisfazer a dívida. Ainda conforme o processo, o dono das empresas chegou a oferecer bem à penhora um terreno na Paraíba – 2.600 quilômetros distantes de São Paulo, onde ocorre a execução – o que, segundo o desembargador "configura um desrespeito à credora, constituindo-se em autêntico ato atentatório à dignidade da Justiça."
As empresas se defenderam na ação dizendo que responsabilizar a sociedade por uma obrigação pessoal do sócio é uma medida excepcional, que só pode ser decretada em situações extremas, em que há prova de fraude ou ilícito, o que não seria o caso. A H.C. alegou que não poderia ser responsabilizada pela dívida de O.A., já que o quadro societário só seria constituído pela sua esposa, I.M.L., e pela C.F. – alegação rejeitada pela Justiça. Já a C.M.de V. não negou que O. A. seja seu controlador, mas argumentou que não há qualquer fraude à execução, já que o empresário apresentou sua declaração de renda e indicou bens à penhora.
O escritório Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados informa que já levantou o valor de R$ 667 mil e que pediu um novo bloqueio nas contas das empresas, em torno de R$ 160 mil, decorrentes de correção monetária e honorários de sucumbência impostos pela fase de liquidação do julgado. Já o Grupo C., procurado pelo Valor, apenas indicou, por meio de sua assessoria de imprensa, o escritório Saddi Advogados para falar sobre o tema. O escritório informou, no entanto, que apenas assessora a C.M., que só assumiu a ação após o deferimento da liminar, em agosto, e que não foram intimados para o julgamento ocorrido em novembro. A banca informou ainda que recorrerá da decisão no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou no Supremo Tribunal Federal (STF) para anular o julgamento. Procurados pelo Valor, os advogados que constam no processo como defensores das empresas e do empresário – M.A.N.J. e J.de O.L.N., respectivamente – não retornaram até o fechamento da reportagem.
Fonte: AASP