Está próximo o fim do prazo prescricional relativo ao pacote econômico de janeiro de 1989, o Plano Verão. Assim como no Plano Bresser, haverá nova corrida ao Judiciário. Os aplicadores em cadernetas de poupança irão postular diferenças de correção monetária que, entendem, devam incidir sobre os saldos da época em razão das medidas de política monetária aplicadas pelo governo federal no controle da inflação.
Antes do Plano Real, os pacotes causavam frustração. Entre os economistas há certo consenso de que as medidas eram necessárias e fundamentais para o controle da inflação e para a reorganização da economia. Ainda que seus efeitos tenham durado pouco, os pacotes afastaram o risco da hiperinflação.
Há o senso comum de que os poupadores teriam direito adquirido às diferenças de correção monetária, e há aparente certeza de que seriam os bancos os beneficiários dos pacotes.
Não há direito adquirido a índices de correção monetária que foram alterados, como única alternativa para bloquear a hiperinflação. Também é equivocada a opinião de que os bancos seriam os beneficiários das diferenças de correção monetária.
Esse é um mito a ser superado. Por detrás da opinião está a idéia de que haveria altas somas, não pagas aos poupadores quando do plano econômico, embolsadas pelos bancos, que deveriam agora devolvê-las, como se os depósitos em poupança tivessem sido corrigidos por índice maior e os poupadores tivessem recebido a correção por índice menor. A diferença teria ficado com os bancos. Isso não é verdade e a atualização monetária das aplicações financeiras observou as regras de política monetária dos planos econômicos. Os recursos dos próprios bancos e de seus depositários foram corrigidos pelas mesmas regras. Se assim não fosse, os bancos teriam sido punidos. Os bancos tiveram participação passiva na tentativa de estabilização da economia, apenas cumprindo determinação do governo federal. Não houve sobra de recursos decorrentes da diferença de índices, assim como não há dinheiro à espera de seus titulares.
No plano jurídico merece reflexão a questão do direito adquirido a essas diferenças, porque há que se ter cautela para afirmar existir direito adquirido em tema de política monetária. É nesse sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), ainda que sem manifestação sobre a questão dos planos econômicos.
O governo define a política monetária por meio de normas de ordem pública, com aplicação imediata. Pode editar regras de desmanche da indexação da economia, ainda mais em situações iguais as do final da década de 80, em que a hiperinflação nos rondava. Se, para isso, o governo tiver de olhar aos interesses que possam ser atingidos pelas medidas que deva tomar, essa prerrogativa estará inviabilizada.
A intangibilidade de situações concretas, propiciada pelo dogma do direito adquirido, deve considerar a perspectiva do equilíbrio, proporcional, entre o interesse geral presente na opção por um regime de estabilidade econômica e os interesses particulares eventualmente tocados pelas novas regras.
Essa orientação está na jurisprudência do STF. Sobre a alteração do índice de correção monetária aplicado às contas do FGTS, o STF adotou "o princípio de que não há direito adquirido a regime jurídico". Por ter "natureza obviamente institucional, nada impede a alteração, por lei, dos seus elementos conformadores", aí incluídos "os critérios de correção monetária dos respectivos valores".
Ao apreciar a constitucionalidade da aplicação da tablita (deflator que incidiria em contratos com valor de resgate pré-fixado) o STF julgou que as leis monetárias "não encontram barreira no direito adquirido, seja resultante do contrato, seja decorrente da lei, justamente porque inexiste direito adquirido a padrão monetário, a estatuto legal da moeda, matéria de competência exclusiva do Estado". Caso contrário, "leis da espécie frustrar-se-iam em seus objetivos, como, por exemplo, o de exorcizar o demônio da inflação, se não interferissem nos contratos de execução em curso, por ela não expressamente ressalvados".
No julgamento, a ministra Ellen Gracie afirmou que a alteração do índice de correção monetária não atentaria contra garantias constitucionais, pois provinha de "uma intervenção radical na economia" e, a alteração do índice de correção contratado, preservava a "manutenção das expectativas originais dos contratantes, não a literalidade de sua expressão numérica em quantidade de moeda". Para o ministro Cezar Peluzo, a alteração de índice de correção monetária, em atuação radical do Estado sobre a política monetária, "veio exatamente a preservar a garantia constitucional do ato jurídico perfeito, porque se ordenou a restabelecer o equilíbrio econômico original". Para o ministro Gilmar Mendes a alteração, "ao invés de ferir o pactuado anteriormente, assegurou a manutenção possível do que havia sido pactuado, tendo em vista que o cenário era de redução drástica da inflação".
Devemos refletir sobre a responsabilidade dos bancos quanto às diferenças de correção decorrentes de regras de disciplina da política monetária. Essa reflexão nos faz pensar sobre a presença (ou não) de direito adquirido dos poupadores aos índices expurgados pelo governo, com medidas drásticas e de efeitos imediatos, adotadas para controle da inflação, o que, em última análise, beneficiou a todos. A avaliação cabe ao STF, que provavelmente o fará em uma ação de descumprimento de preceito fundamental. A contar pelos precedentes havidos, haverá coerência com o reconhecimento da ausência de direito adquirido dos poupadores. Com isso ganhará o interesse coletivo e o Estado de Direito, no papel de defensor dos direitos fundamentais da coletividade.
Fonte: Valor Econômico