Tem sido objeto de críticas, elogios e perplexidade a idéia de criação de uma nova lei de seguros. Como acontece nesse tipo de debate aberto, certos mitos, repetidos diversas vezes, tornam-se parte do senso comum, sem que tenham passado de fato pelo teste do bom senso.
O primeiro mito é o de que a regulação brasileira tem se tornado minimalista, permitindo que agentes privados, com excessiva liberdade, gerem distorções de mercado e prejuízos para os consumidores. Não se pode confundir regulação com lei. Leis, elaboradas pelo Poder Legislativo, são mais abertas e menos detalhadas, enquanto a regulação, editada por um ente que se submete aos fins definidos pela lei, deve ser dinâmica e adaptável ao desenvolvimento da atividade. Logo, o debate regulação versus lei é falso.
A tentativa de elaborar uma lei que elimine a regulação revela apreço por uma realidade estática que já não existe mais. Além disso, essa tentativa resultará em uma norma que rapidamente se tornará obsoleta e dificilmente será alterada, dadas as inúmeras prioridades do Poder Legislativo. Aliás, no Brasil estamos muito longe da sub-regulação da atividade de seguros. Nosso problema ainda é uma legislação, apesar da enorme evolução nos últimos anos, que é excessiva e desfocada, dificultando a vida das empresas e restringindo a oferta e o desenvolvimento de produtos. Nesse contexto, chega a ser uma triste ironia a idéia de que precisamos de mais regulação.
Outro mito é o de que não temos uma lei de seguros. O Código Civil, editado em 2002, tem um capítulo sobre seguros, dividido em três seções, uma geral e duas que cuidam dos seguros de danos e de pessoas. Alguns criticam o código. Criticar – assim como melhorar – é sempre possível. Contudo, entre as alternativas que se colocam, o Código Civil é de longe, mas realmente muito longe, a melhor. O Código Civil caracteriza-se por normas abertas à evolução da sociedade, sem deixar de tratar dos aspectos mais importantes e dos princípios estruturais da atividade de seguros. E tal modelo, moderno e desafiador, escolhido não somente para os seguros, mas para as relações privadas em geral, ainda não passou sequer da primeira infância.
Esse, aliás, é um traço distintivo nosso: trocamos de modelos e soluções antes de ser possível que eles apresentem resultados. Temos um problema? Façamos uma lei, sem analisar se a lei anterior estava sendo corretamente aplicada ou mesmo se o problema estava na lei. Pelo menos, nós, advogados, somos beneficiados com o aumento na demanda por trabalho. Assim, de lei em lei, continuamos com os mesmos problemas e vícios. E a crítica à lei vigente torna-se um exercício regular daqueles que pretendem gerar uma nova.
Precisamos efetivamente de uma nova lei, mas não uma que trate dos contratos de seguros e das relações privadas, e sim da supervisão, dos seus limites e poderes e da estrutura do Sistema Nacional de Seguros Privados. Proponho um exercício: ler o Código Civil e procurar por normas antiquadas, que precisem de atualização e estejam criando entraves. Encontraremos, de modo geral, algumas disposições passíveis de críticas, mas especialmente de discussão quanto aos seus impactos – discussões essas que ainda estão no seu início.
Leiamos então o Decreto-lei nº 73, de 1966. A estrutura ultrapassada salta aos olhos, sendo difícil, em uma seqüência de três artigos, não encontrar uma regra em total desuso. E isso traz prejuízos para a sociedade. Senão vejamos: 1) não é possível a adoção do termo de compromisso no mercado segurador, que transforme penalidades em acordos. Lavrada uma representação ou abertos 200 processos de reclamação, esses devem ir até o fim e as multas devem ser cobradas, por mais que a empresa tenha identificado e solucionado a irregularidade; 2) os servidores da Susep não têm qualquer garantia de que não serão acionados pessoalmente por seus atos, o que traz insegurança e, por exemplo, atrasa a decretação de liquidações de empresas, com prejuízos para os consumidores; 3) não temos uma agência de seguros, cujos dirigentes tenham mandatos e estejam sujeitos a regime claro de proteção e controle; e 4) a previdência complementar, nas suas modalidades aberta e fechada, é regulada e fiscalizada por estruturas diferentes, com custos duplicados, desnecessários e a possibilidade de escolha, pelos agentes privados, da regulação e fiscalização a que se submeterão – a chamada arbitragem regulatória.
De fato, seja qual for a origem e o objetivo dos projetos ultimamente em debate, é certo que não resultaram de uma avaliação das nossas reais necessidades. Aliás, nosso maior problema não são os equívocos de um projeto de lei conceitualmente errado, mas sim aceitarmos a adoção dele como item relevante da nossa pauta – e esse artigo é um paradoxo nesse sentido.
Fonte: Valor Econômico
- (41) 3022-7484
- Rua Moysés Marcondes, nº 726, Juvevê / Curitiba CEP 80530-320